15.2.08

Vidas Secas, Corações Úmidos; ou sobre Como é Possível Encontrar Pasto numa Gamela Vazia.

Seco. Este é o espírito do autor e potencial narrador de Vidas Secas. Objetivo. Tão objetivo quanto Fabiano e Sinhá Vitória em suas toscas tentativas de conversa. Tão objetivo que fragmenta a história de uma família em pedaços unidos em um livro de mais ou menos cem páginas. Tão objetivo que sequer foi importante declarar o nome dos filhos do casal.

Graciliano Ramos conta a história de uma família seca em um lugar inóspito de forma fecunda. Toda a secura do espaço físico nos é passada através dos pensamentos semi-áridos, brutos, calejados de Fabiano. As suas tensas tentativas de expressão problematizam o homem como animal. O próprio Fabiano nos remete às suas reflexões sobre ele ser animal ou homem. Graciliano Ramos refere-se a essa questão ao humanizar mais a cachorra Baleia do que qualquer outra personagem. Depois de Baleia só mesmo os meninos são mais humanos, respectivamente o mais novo e o mais velho. Ainda não cresceram o suficiente para se tornarem tão ressecados quanto o pai.

Vidas Secas nos mostra uma realidade miserável sem apelar descaradamente para o sentimental. No lugar de acontecimentos típicos de um sensacionalismo superficial, de uma idealização exagerada, o livro nos oferece uma seqüência de rotinas. Rotinas fatigantes, cansativas, comuns no dia a dia do retirante. Rotinas secas, mas às vezes ainda assim recheada de reflexões objetivas, simples e enriquecedoras para o leitor.

Apaixonantes são as personagens principais do livro. Pessoas simples, dignas e humanas de coração. Apaixonantes são os desejos utópicos de Fabiano e Sinhá Vitória. Mesmo quando esta deseja uma cama de couro ou um vestido vermelho para exibir entre as outras “cablocas”. Apaixonantes pela simplicidade e pela ingenuidade, pela força e pela esperança que não morre e que os faz viver.

Um livro que ensina em poucas palavras que é possível superar o lógico, encontrando a umidade na secura, a esperança no vazio. E que a capacidade de pensar logicamente é tão humana quanto a habilidade de superá-la.

14.1.08

Sobre o rosto do verbo.

No princípio era o verbo. E no fim também. De fato, o verbo reina há muito tempo em nossa sociedade eurocêntrica como a principal interface entre os homens. Com o lento processo de codificação verbal que culminou na formação dos idiomas, o ser humano foi deixando em segundo plano outros padrões de linguagem, como, por exemplo, a linguagem gestual. A própria imagem, antes soberana nas pinturas rupestres, totens, esculturas, etc., cede uma enorme fatia do bolo para a recém descoberta tecnologia: o idioma. Assim, tivemos o surgimento do alfabeto como, talvez, a mais importante das invenções da coisa autoconsciente a que nomeamos homo sapiens, desencadeando uma revolução tecnológica que se faz sentir até hoje, como uma das tecnologias possibilitadoras da própria internet. Devemos muito dos nossos saberes constituídos no decorrer de nossa história ao poder comunicacional do verbo. Mas e enquanto as outras formas de linguagem? E enquanto a imagem?

A invenção do papel, da tipografia, bem como outros suportes próprios para a linguagem verbal ajudaram a divulgar o poder da escrita. Por muito tempo, o mais popular meio de reprodução em massa usava um padrão de linguagem que tinha como tecnologia de transmissão de idéias, o verbo. A fotografia mesmo só foi aparecer muito tempo depois dos tipos móveis. Mas com o século XX acontece uma reviravolta. Tecnologias que possibilitaram a reprodução em massa da imagem (juntamente com o som) surgiram no mundo. Rádio, TV e internet inundam o habitat natural com áudio e vídeo, causando uma mudança significativa no modo como vive o animal dito racional. Mas a minha pergunta, que obviamente não conseguirei responder é: a invasão e a popularização de um suporte tecnológico que permita o desenvolvimento de outras linguagens que não a verbal-oral-escrita, poderá construir um mundo onde os seres humanos poderão interagir e se comunicar usando outro padrão que não o verbal? As possibilidades de uma linguagem imagética se desenvolverão de forma independente com a evolução das tecnologias da comunicação, ou ficará ela sempre dependente do código verbal, submissa a uma legenda que a explique racionalmente em uma seqüência de letras?

O que sabemos com certeza é que o verbo não dá conta de toda a realidade, sendo apenas uma maneira de abordar a nossa constante tentativa de representar o mundo. Mas se estamos certos disso, por que não darmos chance a outras formas de representação tentar dar conta do que a linguagem verbal não consegue contemplar?

12.12.07

Sobre o Singular e a Verdade em Walter Benjamin.

O pensamento de Walter Benjamin é permeado da finalidade transformadora de agir no mundo prático. Para ele, não faz sentido que a filosofia apenas se preocupe com o mero abstrair de seus conceitos, mas que ela trabalhe para a transformação prática da realidade, dando sentido ao nosso milenar esforço intelectual. Aqui podemos ver claramente sua filiação a Marx, mas com a diferença de que Benjamin não admite a idéia de haver a figura de uma liderança que guie a massa proletária para a revolução, nem muito menos a idéia, na esteira do iluminismo, de uma utopia forjada pelo intelectual que realize o τέλος histórico. Para o nosso autor, cada homem deve aprender a pensar por si próprio. A relação entre os homens e as épocas é monadológica, pois a mônada não tendo janelas, possui dentro de si todas as possibilidades de ser líder de si mesma. A revolução, em Benjamin, é uma categoria do ser e não apenas um conceito sóciopolítico. Ela pode ser encontrada dentro de cada um de nós. Dessa forma, podemos ver a proximidade imanente da filosofia benjaminiana à área ética.

No prefácio de seu texto Origem do Drama Barroco Alemao, Benjamin faz uma diferenciação entre o conceito de saber e o conceito de verdade. O primeiro, pode ser possuído pelo homem. O segundo, “esquiva-se a qualquer tipo de projeção no reino do saber” (BENJAMIN, 1989, p: 51). Assim, não é possível apoderar-se da verdade. Tudo o que nós tomamos posse é apenas saber. E se tentamos nos apossar dele, é porque temos a intenção de possuí-lo. Assim, entramos na esfera da intencionalidade. Para Benjamin, o saber é intenção, quando ele se transforma em técnica a serviço das massas. Isso não significa que Benjamin assuma uma postura de rejeição diante da ciência. Esta, é para ele uma das interfaces do conhecimento. Entretanto, a filosofia não pode ser medida more geometrico. A ciência busca as suas respostas sempre com base em alguma intenção, o que a caracteriza como saber, e não como verdade. Com relação a esta última, a verdade, o processo não acontece da mesma maneira. A verdade não entra em uma relação intencional. Ela aparece nas imagens dialéticas. Assim “a doutrina filosófica funda-se na codificação histórica”, pois a história antes de ser uma ciência é feita de reminiscências (BENJAMIN, 1989, p: 49). Para Benjamin a verdade se auto-apresenta. No exato momento em que tentamos procurar a verdade, nós nos situamos dentro da esfera da intencionalidade. E como somente o saber é intenção, tudo o que conseguimos conquistar é saber, não verdade. “A verdade é a morte da intenção” (BENJAMIN, 1989, p: 58). Por isso não é possível procurar a verdade, pois, no momento em que intencionamos buscá-la, entramos na dimensão intencional, não podendo mais achá-la no lugar onde procurávamos. Com relação às questões da verdade, Benjamin sugere o método da contemplação filosófica própria do tratado medieval da escolástica de Santo Tomás de Aquino a Guilherme de Ockham.

Mas como a verdade poderia se manifestar sendo completamente isenta de qualquer intencionalidade? Assim, chegamos ao conceito de revelação. Benjamin coloca que a verdade se dá como revelação. Ela surge em uma iluminação profana do pensamento. E é exatamente na obra de arte que o autor encontra o conteúdo da verdade. Porque só Eros pode testemunhar que “a verdade não é desnudamento, que aniquila o segredo, mas revelação, que lhe faz justiça” (BENJAMIN, 1989, p: 53). É aqui que entra a dimensão de verdade da obra de arte. O revelar-se da verdade na obra de arte corresponde exatamente à eliminação de toda e qualquer intenção. Não podemos nos apropriar do segredo da verdade, mas deixar que ela se auto-apresente em seu revelar. É na fugidia imagem dialética que se da o aparecimento da verdade. Tal qual um relâmpago, ela aparece como fulguração (BENJAMIN, 1987). Chega-se então à dimensão do conteúdo de verdade da obra de arte, quando os seus conteúdos factuais de valor histórico desaparecem, isto é, no momento em que a obra de arte se transforma em ruína, em fragmento significativo, descoberto pela crítica. Assim surge a discussão sobre a alegoria. Ao contrário do símbolo, que cristaliza o sentido, a alegoria apresenta uma pluralidade de significações.

O termo alegoria, segundo Sergio Paulo Rouanet afirma na apresentação de sua tradução de Origem do Drama Barroco Alemão, deriva etimologicamente de allos, outro, e agoreuein, falar na ágora. Dessa forma, em uma linguagem literal, falar alegoricamente significa dizer uma coisa para significar outra. A alegoria possui uma significação plurívoca, onde o outro dito por ela não transparece, não se mostra de forma explícita. Ela constitui o jogo entre o desvelar e o encobrir. Ela é uma figura própria para o nosso tempo de indefinição e de uma complexidade de referenciais. Dessa forma ela se insurge contra o símbolo, contra o significado unívoco e fossilizado pela convenção. Assim Benjamin desenvolve o conceito de uma contramão histórica que deverá questionar a metáfora da rua de mão única da civilização no conceito de história oficial. No símbolo, não há a tentativa de dizer o outro, mas de dizer exatamente o que o símbolo mesmo significa, o que caracteriza a oposição à alegoria. Benjamin descobre então que a alegoria não é convenção da expressão, mas expressão da convenção. Ela sintetiza as imagens do mundo (Weltbilder).

Se a alegoria comporta uma multiplicidade de significados que exatamente por serem múltiplos dizem o outro que não a convenção, podemos dizer que a alegoria acaba por se afastar da esfera da intenção. E dessa maneira, a verdade pode se auto-apresentar em uma revelação que se dá não mais no plano sagrado, mas no profano.
Deixamos claro que a verdade não pode ser possuída por nós através de nosso conhecimento e ciência. Estudando o surrealismo, Benjamin observa que ela se manifesta no inconsciente. Concluímos então que, se não podemos apreendê-la, da maneira como fazemos a um objeto, tudo o que podemos fazer é deixar que ela, como “equilíbrio tonal das essências”, se apresente através dessas idéias. Aqui nos deparamos com a questão da apresentação da idéia.
Para Benjamin, o more geometrico da matemática nos demonstra que para chegarmos ao conhecimento genuíno, devemos eliminar totalmente qualquer forma de representação. Mas, no momento em que esta ciência busca a eliminação, ela renuncia exatamente à esfera da verdade que é visada pela linguagem. E é nesta mesma esfera da verdade em que a linguagem se situa, onde se dá a verdadeira forma da filosofia, que, para ser fiel à lei de sua forma, deve ser representação da verdade, e não guia para o conhecimento (BENJAMIN, 1989).
Assim, Benjamin critica o método das ciências particulares de investigação. “Para que a verdade seja representada em sua unidade e em sua singularidade, a coerência dedutiva da ciência, exaustiva e sem lacunas, não é de nenhum modo necessária. (...) Essa sistematicidade fechada não tem mais a ver com a verdade que qualquer outra forma de representação” (BENJAMIN, 1989, p: 55).

A pretensão do saber particular de alcançar o todo no sentido do universal, excessivo não faz sentido. O ser indefinível da verdade não pode ser alcançado pela dedução exaustiva e sem lacunas do sistema, porque a dedução coloca as idéias num “continuum pseudológico”. Este não é o caminho para se chegar à totalidade. Assim, entendemos a citação de Goethe que Benjamin coloca como epígrafe no início de sua obra. “Não devemos procurar essa totalidade no universal, no excessivo, pois assim como a arte se manifesta sempre, como um todo, em cada obra individual, assim a ciência deveria manifestar-se, sempre, em cada objeto estudado” (GOETHE apud BENJAMIN, 1989, p: 49). Aqui está a pista que nos diz onde podemos procurar a totalidade: na unidade do singular.

Não podemos alcançar o todo da verdade, mas podemos procurar na unidade do singular, a maneira de contemplarmos a totalidade. Assim, chegamos à idéia de totalidade construída à maneira de um mosaico medieval, a partir da justaposição de elementos isolados e heterogêneos. Esse é um conceito que aparece no Trauerspiel. E cada um, à sua própria maneira (pois cada fragmento do todo é heterogêneo) poderá atuar para esse fim. Para Benjamin, o conteúdo do gênero humano não é massa homogênea. Existe uma heterogeneidade imanente nos homens particulares. Assim como o mosaico medieval, cada fragmento é indispensável no todo. Aqui a teoria benjaminiana nos traz, então, uma implicação ética: a valorização das diferenças. Pois são as diferenças dos indivíduos que vão formar a totalidade.

Cada indivíduo, à sua maneira, segundo suas próprias experiências, tem todas as condições de experienciar a revelação da verdade. Se a verdade não pode ser transmitida, chega-se a conclusão de que ninguém pode se dar o direito de deter a verdade absoluta. Assim, essa idéia nos leva a exercitar a experiência a partir de uma consciência histórica e da responsabilidade de cada um, para transformar a “dinâmica histórica” em ação política.
Se todos têm o poder de realizar seu próprio caminho em direção às suas próprias experiências (pois somos mônadas) e nenhum de nós pode deter a verdade de sua experiência como a verdade absoluta e objetiva, podemos concluir que todos nós temos o mesmo poder de agir sobre o mundo. Assim, vemos aqui uma importante implicação política, uma idéia que desde os primórdios da filosofia vem se desenvolvendo na história do pensamento humano: o conceito de democracia.

11.7.07

Fragmentos a favor do subjetivismo.

Não vejo melhor forma de apreensão da realidade do que declarar a impossibilidade do positivismo valorizando ao máximo a subjetividade. O conto da objetividade acadêmica é conversa pra boi dormir. Ao lidarmos com o fato, objetivo, frio e "racional", perdemos muito das informações subjetivas individuais que, para mim, longe de deturpar o fato, o enriquecem com as suas gorduras, adjetivos, juízos de valor, humores, sentimentos e outros nomes negados no "texto que se compromete com a verdade". Como se existisse UMA verdade objetiva! A verdade são várias. No máximo, pouco mais de 6 bilhões de verdades convivem no mundo entre si. E nenhuma delas é falsa. A verdade não está no conceito, mas nas condições que levaram determinada individualidade chegar a uma conclusão. Nesse sentido, temos de parar de querer impor nossas verdades fragmentadas sobre as de outros e começar a compreender os motivos desses outros pensarem de outras maneiras. A verdade está no saber o que levou os indivíduoas a pensarem como tal. Se considerássemos como pressuposto que, aquilo que Fulano disse, independente de quem ele seja, não passa da visão que Fulano tem sobre determinado assunto, começaremos a demolir esse conceito medieval de autoridade. E mais, conseguiremos começar a construir uma verdadeira objetividade: a construída a partir da comunhão de visões. A verdadeira objetividade, que dá conta de muito mais infomação do que o fantasioso fato objetivo, é construída a partir da conjunção de várias subjetividades, com seus juízos de valor, sentimentos, raivas, angústias, medos, anseios, amores e vontades. Nietzsche já tinha declarado a estupidez do fato. Heidegger colocou a objetividade como uma construção. Precisamos colocar em prática o clichê que diz que ninguém é dono da verdade. Só o conhecimento é posse, não a verdade, disse Benjamin. É preciso que não analisemos os conteúdos dos juízos, mas suas condições de produção.

11.5.07

Revolução ou Evolução na Comunicação?

Uma pergunta que sempre aparece para mim em meio a todas essas incontáveis discussões sobre comunicação é se vivemos um momento revolucionário no modo como se dão as relações entre os homens, ou se estamos passando por um período de mera evolução de nossas possibilidades comunicativas. A questão é indagar se, em meio a todos os discursos referentes ao fenômeno comunicacional atual, sejam eles apocalípticos ou integrados, testemunhamos um evento de mudanças qualitativas, isto é, rupturas estruturais, fundamentais no que diz respeito à comunicação e interação humana, ou se observamos apenas modificações meramente quantitativas. Mudamos a essência da maneira como nos comunicamos ou apenas ganhamos braços maiores? Nossos olhos e ouvidos agora recebem impressões de origens das mais longínquas. Que potencializamos nossos sentidos, isso não é novidade. Mas o que teria mudado, ou não, com essa potencialização, na essência do homem como produtor de linguagem?

Um computador conectado ao mundo, coisa ridiculamente comum hoje em dia, permite que um interlocutor se comunique em tempo real com quem quer que se localize em frente a uma outra cpu também conectada. Nesse caso podemos interagir com outros desses seres existentes magicamente a milhares e milhares de quilômetros. Mas a forma com que os dados sensíveis são recebidos pela nossa percepção para depois serem organizados pelo intelecto ainda é a mesma de muito tempo atrás. Se pensarmos assim, não parece tanto que as maravilhas das não tão novas, novas e novíssimas tecnologias da comunicação justifiquem aquele gozo tântrico do Pierre Lévy.

Desde que o homem separou a si mesmo da natureza ao ganhar a consciência da existência dele próprio, ele começou o interminável trabalho de representação da realidade (se não de toda a realidade, pelo menos da que ele conhece). Paralelamente, supomos que, ainda mesclada com toda a linguagem corporal, o homem começa a desenvolver os primeiros padrões lingüísticos na voz. Assim, temos dois campos de atuação que vão se desenvolver na história do homem ao mesmo tempo, com caminhos por vezes intercruzados e por outras vezes separados: a imagem e o discurso. E um terceiro caminho, a escrita, filha dos dois primeiros.

Com a escrita, o código verbal separa-se da linguagem corporal e torna-se puro, desenhado sobre um suporte. O verbo, que antes era etéreo, profaniza-se ganhando um espaço para habitar. Com a herança materna, a escrita pôde ser também uma imagem, o que permitiu que ela pudesse ser impressa em um suporte Com o pai, ela ganha a capacidade lingüística de expressar idéias e sentimentos através das convenções verbais.

A história do homem fez amplo uso dessa trindade santa. Mas a escrita teve um grande destaque como uma ferramenta de comunicação. Ela permitiu que as idéias e signos tivessem uma existência física, o que era uma grande vantagem sobre o discurso oral. Os signos lingüísticos puderam ser registrados o que facilitou sua manutenção na história e divulgação. Posteriormente, a invenção de Gutenberg potencializou o poder da escrita. A humanidade viu nascer o livro impresso, os jornais e todo o tipo de publicação possível com os tipos móveis. A escrita se tornou cada vez mais presente desde então.

O discurso oral precisou esperar sentado até a popularização do telefone, onde ele pôde ser utilizado como técnica de comunicação a distância. Posteriormente, aparece o rádio. A oralidade ganha, pela primeira vez, audiências massivas. O rádio, mesmo autoritário em sua relação “um para todos”, conquista lugar sagrado nas famílias dos existentes, monopolizando as conversas na hora de jantar, seja ele discursando para a nação, contando histórias de amor e ódio, ou narrando eventos esportivos.

A imagem demorou um pouco para ter esse papel de comunicação de massa. Desde as pinturas rupestres, ela passou pelo elitismo dos movimentos artísticos, pelas iluminuras dos livros medievais, pelos panoramas parisienses do século XIX, até, passando pelos cartazes impressos, chegar no daguerreótipo (e naquele outro que apareceu ao mesmo tempo, mas que ninguém nunca lembra). Surge então a fotografia, aquele “bicho do cão” que, nos dizeres do jornal chauvinista citado por Benjamin pretendia cometer o sacrilégio de tentar “fixar efêmeras imagens de espelho” de um homem feito à semelhança de Deus que, por serem a imagem Dele próprio, são impossíveis de serem fixadas por um mecanismo humano (LEIPZIGER ANZEIGER apud BENJAMIN).

Com esse mecanismo diabólico, a imagem alcança o poder de ser facilmente produzida e reproduzida para a contemplação da incontável (e contraditória) massa de indivíduos, fato que será ainda corroborado com o posterior surgimento do cinema e da TV.

Assim, chegamos ao contemporâneo computador. A bugiganga eletrônica que unificou os múltiplos tipos de imagem e som. Agora cabe a pergunta. O computador mudou em essência a maneira como se dá a comunicação entre os homens? A convergência entre todos os gêneros de suporte em uma só máquina nos traz uma ruptura com a nossa tradição de comunicação? Esta ruptura é algo que muda qualitativamente nosso modo de expressar idéias ou apenas possibilita que expressemos idéias para mais pessoas e mais rapidamente do que antes? O que estamos observando é o início de uma revolução da linguagem humana? O que temos hoje é a possibilidade de unirmos aspectos da interação face a face como, por exemplo, a linguagem corporal, com as possibilidades de comunicação à distância trazidas por tecnologias como a televisão e o rádio, mais a possibilidade de estabelecermos não uma emissão-recepção, mas uma comunicação em duas ou mais vias. Esse fato produzirá novas formas de interação?

Em essência, para nos comunicarmos, ainda nos utilizamos daqueles três elementos de origem antiqüíssima na história do homem. Em um primeiro momento não parece haver mudança fundamental na estrutura constitutiva daquela tríade. Mas as novas possibilidades nascidas no contemporâneo podem desencadear um momento de mudança estrutural das relações de comunicação. A própria linguagem corporal, pode reaparecer com o uso das webcams ligadas nos computadores conectados a internet, o que pode modificar significativamente a maneira como se dão as relações nesse contexto. O interlocutor, antes de aparecer na frente de sua câmera para outras pessoas, vai precisar se portar corretamente segundo as exigências da norma moral válida.

O computador também pode estimular a imagem como produtora de significados independente da [des]necessária legenda que tem a função de explicitar o conteúdo da figura. A possibilidade de trabalharmos com signos não lingüísticos e independentes de uma escrita, parece se aproximar. Se já possuímos um clichê que diz que o signo lingüístico não dá conta de toda a realidade, o que faz a filosofia se aproximar cada vez mais da literatura e da arte, se utilizando de metáforas e outros exemplos imagéticos para a expressão cada vez mais fiel das idéias e sensações, a imagem como linguagem independente seria uma solução.

Mas o caminho de uma linguagem imagética tão eficaz quanto a lingüística de fato é um tanto obscuro. Talvez o correto não seja separar as linguagens, mas utilizá-las todas conjuntamente. Como já falamos, o computador teve o papel de unificar algumas das múltiplas linguagens produzidas pelo homem em uma máquina apenas, permitindo que sejam utilizadas ao mesmo tempo, que se complementem. Se a revolução profetizada se baseia nessa capacidade do computador de se aproximar cada vez mais da riqueza da interação face a face, ainda tenho dúvidas se podemos chamar tudo isso de revolução. Mas se falamos em possibilidades radicalmente novas de interação, mesmo que ainda obscuras para nós, talvez possamos falar em reais possibilidades revolucionárias da linguagem.

13.4.07

Arte sacralizada versus arte multiplicada. A reprodutibilidade técnica da obra de arte em Walter Benjamin.

O advento da época da reprodutibilidade técnica modificou profundamente o modo como o homem se relaciona com a obra de arte. Esta última, em seu momento histórico primordial, possuía sua expressão, sua função, nos cultos mágico-míticos praticados pelos homens de outrem. Essa característica religiosa da obra de arte se manteve intocada e firme até o surgimento e desenvolvimento das tecnologias que permitiram a sua reprodutibilidade técnica. Nesse contexto, temos a fotografia, que obedecendo à lógica do "crescei e multiplicai-vos" deu início a uma crise de sentido que transformou de forma extraordinária a nossa relação com a obra de arte. Se esta possuía um valor de autenticidade, na medida em que cada obra seria única em existência, com o aparecimento das tecnologias que tornaram possível a reprodução técnica, a obra de arte perde esse direito de se proclamar exclusiva, autêntica, para se tornar múltipla, reproduzida. Com isso, a aura mítica, religiosa, que permeava aquele objeto único no mundo, quase inatingível, se esvai na medida em que ele é multiplicado e distribuído pelo mercado sedento por novos e modernos produtos tecnológicos. Assim, com a queda do critério da autenticidade da obra de arte, da sua aura dividida entre todas as suas incontáveis reproduções e do desaparecimento dos seus valores mítico-religiosos, a produção artística passa a fundamentar-se em um outro valor que não o "valor de culto" (kultwert), mas sim no "valor de exposição" (ausstellungswert).

21.2.07

Em busca da essência do erro político. Uma pergunta inacabada.

A busca pela pergunta fundamental de uma questão, seja ela qual for, me parece ser o atalho mais rápido para a conquista de uma resposta prestável. Dentro da problemática política, uma pergunta que de vez em quando surgia para mim era a que indagava a possibilidade ou não de existir uma lei necessária, humana, natural que causaria o ser humano, quando posto em uma situação de poder, como mais preocupado em manter este poder do que em realizar ações que beneficiem a comunidade que lhe rodeia. Tudo bem que a necessidade de se trabalhar em prol do outro (que significa também trabalhar em prol de si mesmo) varia de acordo com a personalidade de cada um. Mas se situarmos nosso exemplo em uma pessoa que esteja ocupando um cargo político, a obrigação de priviliegiar o bem comum sobre o bem particular deixa de ser apenas um dever moral, interno, para se tornar também um dever funcional, externo. Nesse sentido, situa-se a pergunta. Uma pessoa que ocupe um cargo público, político, no momento em que veste a batina do poder, terá como prioridade a sua manutenção neste poder ou a boa execução da função a qual ele foi designado?

De fato, essa indagação cheira a positivismo barato. Não podemos extrair leis fundamentais e universais a partir do conhecimento empírico, como manda o velho manual da Lógica. Mas algumas experiências que possuímos não deixam de perturbar nossa razão. É normal que o indivíduo político se preocupe com a manutenção de seu cargo, mas daí não podemos tirar nenhuma lei natural que afirme que ele colocará necessariamente o seu próprio umbigo como prioridade suprema. O bom senso nos leva a crer que existirão alguns que se preocuparão mais com as suas necessidades particulares e outros menos. Assim como alguns olharão mais para o bem comum do que para o particular. O problema de procurar leis naturais nessa representação coletiva que chamamos de mundo é que, se existirem leis físicas que controlam as relações humanas, ainda estamos bem longe de uma compreensão mínima delas.

Mas então qual seria a pergunta apropriada para começarmos a compreender os fundamentos essenciais de como acontece a política e as relações de poder no homem? Talvez o individualismo puro e simples esteja próximo da pergunta que procuro. Mas seria ele a raiz de todo o problema político ou apenas um sintoma, um efeito que pressupõe uma causa anterior? Não sei se consigo retroceder a uma causa anterior ao individualismo, mas de fato, ele parece estar relacionado ao problema da política. A indiferença com que trata os problemas que não afetam diretamente a sua individualidade, torna o individualista um homem incompatível com a carreira política. Mas como lutamos contra o individualismo? Como evitar que essa característica comum da percepção do homem, que é sujeito, ou seja, só percebe o mundo através de um ponto de vista, não se prolifere?

O homem, pela percepção dos sentidos só possui uma opinião: a sua. Mas através da razão, ele pode compreender inúmeras opiniões e sentimentos. Ele pode se colocar no lugar do outro. Daí o conceito de alteridade. A possibilidade do homem de ver os companheiros de existência como "outros-eu". Aqui vemos uma maneira de confrontar o individualismo: com o correto uso da razão.

Mas aqui, precisamos fazer uma diferenciação. Pensamento, essência do homem. Reflexão, construção do homem. A primeira é intrínseca a todos os homo sapiens sapiens. A segunda, é resultado do esforço de pensar reflexivamente. Por isso se chama refletir. O pensamento que pensa a si mesmo. Chegamos na porteira da educação. É possível ensinar a raça humana a refletir? É possível educar o homem?